O dia do grande desafio: 13 de março de 2004. Das 106 equipas candidatas, naquela manhã restavam apenas 15 finalistas prontas para percorrer um circuito com cerca de 230 km através do deserto de Mojave.

Na Califórnia, alguns milhares de espetadores estavam reunidos à porta de um bar para assistir a uma corrida com 15 veículos autónomos no primeiro DARPA Grand Challenge.

No ano anterior, com o propósito de estimular a inovação para fins militares, a DARPA – Defense Advanced Research Projects Agency, um braço do Pentágono, tinha anunciado uma competição e oferecia um milhão de dólares a quem terminasse a corrida mais rápido. E agora, ali estava um bando de engenheiros stressados e privados de sono a dar os últimos retoques nas suas estranhas máquinas, qualquer uma digna de ter figurado no filme Mad Max. Sem qualquer humano a bordo, vários SUV, buggies, camiões e até uma mota, equipados com todo o tipo de computadores, sensores e radares, lutavam finalmente pelo ambicionado prémio.

Um pequeno passo…

Infelizmente para os participantes, nesse dia, nenhuma equipa arrecadou a choruda recompensa. Um após outro foram tombando deixando um rasto de postes partidos, cercas de arame farpado destruídas e, ao que consta, pelo menos um extintor de incêndio ficou vazio.

Ainda assim, no meio do caos, um veículo batizado de Sandstorm, criado pela unversidade de Carnegie Mellon, destacou-se: percorreu autonomamente uns notáveis 12 km.

Apesar do desastre, este dia fica na história como um marco no primeiro grande impulso para o desenvolvimento de um veículo completamente autónomo e o desaire inicial não impediu que, no ano seguinte, a prova se repetisse, desta feita com resultados mais animadores: cinco equipas terminaram a prova com sucesso.

Um grande salto…

Com lastro em projetos académicos iniciados nos anos 80, os quais muitas vezes contavam com o alto patrocínio do exército norte-americano, esta louca corrida estimulou a imaginação das empresas.

Em 2009, a Google, agora Alphabet, tomou a decisão de desbravar comercialmente caminho nesta área. Contratou justamente o líder da equipa da universidade de Standford, que venceu o segundo DARPA Grand Challenge e lançou as sementes do que é hoje a Waymo.

A euforia foi tal que muitas outras start-up, tecnológicas e construtores incumbentes seguiram os mesmos passos e investiram biliões de dólares em R&D (Research and Development) nesta inovadora tecnologia. Em 2016 a Ford anunciava estar em condições de operar frotas de táxis autónomos em 2021 e a Lyft apregoava conseguir fazê-lo ainda antes.

Retrospetivamente, este esforço parece não ter passado de um conjunto irrealista de promessas não cumpridas, provando o quão arrojado se revela o empreendimento. Afinal, conduzir é uma tarefa complexa, constituída por muitos ciclos de percepção-planeamento-controlo, à mercê de ambientes incertos e alguns eventos improváveis. Algo claramente fora da zona de conforto das máquinas e computadores.

Período de indefinição

Uma forma de analisarmos a problemática: de onde partimos, onde estamos e para onde vamos, é recorrendo ao Gartner Hype Cycle (ver gráfico abaixo).

Uma representação gráfica e metodológica que nos permite, neste caso, enquadrar os ciclos de inovação tecnológica da condução autónoma.

Se a investigação seminal dos anos 80 e os desafios da DARPA podem ter despoletado o Gatilho da Inovação (Innovation Trigger), os anos 2014-2018 podem ser sinalizados no Pico das Expectativas Exageradas (Peak of Inflated Expectations).

Foram anos marcados por uma série de promissoras histórias de sucesso, amplificadas pelos media, acompanhadas de dezenas de fracassos, alguns, infelizmente, com consequências desastrosas e letais.

Nos últimos anos, no entanto, parece termos caído na deprimente realidade: o chamado Vale da Desilusão (Trough of Disillusionment). Na medida em que o Santo Graal da inteligência artificial parece inalcançável, fica a sensação de que a humanidade jamais vai realizar tal desígnio, o qual permanecerá para sempre exclusivo dos livros e filmes de ficção científica.

Efetivamente, várias empresas têm recuado. Especialmente os fabricantes, a braços com a exigente transição para a eletrificação e mais recentemente com os efeitos da pandemia, têm canalizado os investimentos destinados à condução autónoma para as necessidades mais prementes de curto e médio prazo. No entanto, tal como as expectativas exageradas do passado recente, o atual estado de desilusão parece privar-nos de ver a realidade com clareza.

A assunção que os veículos se vão tornar autónomos, não como um resultado de um salto tecnológico súbito e abrupto, mas sim através de anos de iteração, talvez nos ajude a alinhar as expectativas e ser mais realistas.

Entregas autónomas

A Waymo da Alphabet (Google) e a Cruise da GM têm feito progressos notáveis e, apesar de operarem em ambientes mais ou menos favoráveis e controlados, já oferecem serviços pagos. Os seus veículos autónomos estão atualmente disponíveis à distância do telemóvel e já fazem as delícias de consumidores pioneiros e corajosos.

Por outro lado, toda a tecnologia necessária, como câmaras e sensores LiDAR, têm vindo com o tempo a ficar mais acessíveis. Além da pioneira Tesla, quase todos os construtores começam a incorporar sistemas avançados de assistência ao condutor (ADAS) nos seus veículos de produção.

Ou seja, o caminho que vai do L0 ao L5 (seguindo a taxonomia da Society of Automotive Engineers) começa paulatinamente a ser percorrido. A recolha massiva de dados em situações reais vai permitir que os algoritmos tomem progressivamente melhores decisões e a tecnologia vai não só começar a revelar-se economicamente viável, como aceite e desejada pelos consumidores.

Assim, em breve, é expectável que comecemos a subir a Rampa da Iluminação (Slope of Enlightenment), um território com menos ruído mediático e mais progresso mensurado.

Inteligência artificial a rodar

E à medida que convergem os 5 pilares de sucesso fundamentais (regulação, tecnologia, infraestrutura, atratividade do modelo de negócio e a adoção e preferências do consumidor) chegaremos então ao ponto de plena adoção, o Patamar de Produtividade (Plateau of Productivity).

A maior parte das consultoras vaticina que poderá demorar 10 anos. Já Kai-Fu Lee, um dos mais respeitados especialistas mundiais em inteligência artificial, é mais conservador: aponta para 20 anos.

Demore o tempo que demorar, vale a pena recordar que, quando os automóveis começaram a circular pelas ruas cheias de esterco, as pessoas chamavam a esta bizarria “carruagens sem cavalos”.

Ao longo de um século, o automóvel transformou por completo a forma como nos deslocamos e vivemos em sociedade. Os “veículos sem condutor” prometem adicionar triliões de dólares à economia global e salvar centenas de milhares de vidas. Simultaneamente, poderão devastar muitas indústrias (nomeadamente a automóvel) e deixar muitas pessoas no desemprego.

Mais uma vez, uma tecnologia tem o potencial de impactar profundamente os nossos padrões de mobilidade e consequentemente moldar novamente a nossa sociedade.