A profunda transformação em curso na indústria automóvel está em grande medida relacionada com dados. Com a proliferação de veículos conectados, mobilidade partilhada e, futuramente, a condução autónoma, assistiremos ao crescimento exponencial da quantidade de dados gerados, não só pelos próprios automóveis, como pelos seus utilizadores e também pelo meio envolvente. Esta avalanche de informação abre portas a inúmeras oportunidades de monetização de dados e serviços baseados neles e, claro está, anuncia também alguns desafios.
No passado, tudo o que se passava num automóvel, ficava no automóvel.
Não existia qualquer tipo de conectividade.
Mais recentemente, acompanhando a evolução das tecnologias da informação, a indústria foi introduzindo algum tipo de conectividade, mas que, ainda assim, não ia além da monitorização básica e reativa do estado mecânico e utilização do veículo.
No entanto, encontramo-nos hoje à beira do ponto de convergência, onde várias inovações tecnológicas, como o 5G e a Inteligência Artificial, entre outras, prometem transformar a conectividade num sistema inteligente e preditivo, tirando verdadeiramente partido do valor contido na quantidade avassaladora de dados que passam a estar disponíveis.
Consequentemente, todo um admirável novo mundo passa a ser tecnicamente possível de materializar-se: novas experiências de utilização e segurança reforçada; serviços inovadores, assentes em novos modelos de negócio; e, e em última instância, a possibilidade de assinaláveis reduções de custos e novas fontes de rendimento.
O McKinsey Center for Future Mobility aponta para receitas anuais incrementais nesta área entre os 250 mil milhões de dólares e 400 mil milhões de dólares em 2030.
Além dos utilizadores e dos gestores de frota, os beneficiários desta mudança de paradigma envolvem toda uma nova cadeia de valor alargada, tendo a capacidade de impactar positivamente não só os intervenientes clássicos, como fabricantes, concessionários, gestoras de frota e empresas de rent-a-car, mas também alguns insuspeitos.
Entre eles, seguradoras, empresas de telecomunicações, de logística, tecnológicas, os media e as próprias cidades estão a ser chamados a capitalizar e desempenhar um papel relevante neste novo ecossistema de mobilidade.
A mesma consultora, numa análise intitulada “Unlocking the full life-cycle value from connected-car data”, apresenta vários casos de uso, que vão desde seguros baseados na utilização, até planeamento de infraestruturas, aprofundando três que vê com maior potencial de retorno económico.
Conteúdo deste artigo
Actualização remota (OTA – Over The Air)
À semelhança do que já acontece com os nossos telemóveis, o software contido nos automóveis começa a ter a possibilidade de poder ser atualizado remotamente.
As atualizações OTA são enviadas através de uma ligação sem fios e instaladas automaticamente, eliminando a necessidade de visitar fisicamente uma oficina.
Atualizações críticas de segurança podem ser efetuadas, como melhorias ou correções nos sistemas de propulsão e chassis, mas também outras relacionadas com a comodidade, como a atualização de mapas, novas interfaces e versões de aplicações.
Contudo, este salto tecnológico altera por completo a perspetiva de interação com o cliente e proporciona novos canais de monetização.
O fabricante, que tradicionalmente tinha contacto pontual e esporádico com o cliente, passa a poder dialogar e oferecer propostas de valor ininterruptamente ao longo de todo o ciclo de vida do produto.
Hoje podemos fazer um upgrade para ter mais potência ou mais autonomia, para a semana desbloquear novas funcionalidades, como o acesso a sistemas avançados de assistência ao condutor (ADAS).
Numa área que me é cara, imagine-se, por exemplo, como retirando ou adicionando algumas destas funcionalidades no momento da revenda podemos impactar o valor residual?
Otimização do processo de I&D de componentes
O potencial da grande quantidade de dados recolhidos remotamente, em tempo e ambiente de utilização real, não se esgota no software.
O ciclo de desenvolvimento de produto pode ser otimizado e acelerado se, através de sensores, for monitorizado o comportamento dos principais componentes físicos, contribuindo estes dados para identificar e antecipar potenciais problemas; o resultado da sua análise pode ser incorporado imediatamente na linha de montagem ou no desenvolvimento de futuros modelos.
Igualmente prometedor é o impacto que tal processo poderá ter na redução dos custos com as chamadas de segurança (recalls), um desafio antigo com o qual os fabricantes têm ciclicamente que lidar.
Dados e Manutenção Preditiva
Com o acesso direto aos dados dos componentes, consumíveis e estado atual de cada viatura, é possível prever muitas avarias ainda antes de elas acontecerem e agir antecipadamente em conformidade, reduzindo o tempo de inatividade e os custos, um tema especialmente sensível para os gestores de frotas.
Por outro lado, se a oficina conseguir antecipar a necessidade de intervenção ou contar com a marcação proactiva das revisões, também poderá otimizar a coordenação de pessoas, meios e inventário.
Se do ponto de vista tecnológico tudo parece convergir no sentido da materialização desta realidade, a regulação, em paralelo, também tem vindo a fazer o seu trabalho.
Nesta matéria, a Comunidade Europeia e outras entidades sectoriais, como a associação que representa a indústria automóvel alemã (VDA), têm vindo a dar contributos que caucionam o desenvolvimento desta área, providenciando a previsibilidade necessária para que todos os envolvidos possam delinear com confiança os seus investimentos.
O exemplo mais recente terá sido a aprovação das diretrizes emitidas pelo Comité Europeu para a Proteção de Dados (EDPB), no contexto específico de veículos conectados e aplicações relacionadas com a mobilidade.
A indústria automóvel e todo o ecossistema de mobilidade em geral estão a transformar-se rapidamente, à medida que o desenvolvimento tecnológico e social, expectativas e necessidades dos consumidores e preocupações ambientais evoluem aceleradamente.
Ainda que os investimentos necessários sejam enormes e persistam alguns desafios técnicos – de uniformização, organização e legítimas preocupações em relação à privacidade e cibe segurança –, os dados contêm o potencial de construir um lucrativo ecossistema de mobilidade inteligente, sendo apenas uma questão de tempo até que cada um dos obstáculos seja ultrapassado e os receios devidamente acautelados.
Como constata a McKinsey, sete das dez empresas mais valiosas do mundo já geram biliões de lucros provenientes de serviços baseados em dados. Compreensivelmente a indústria automóvel não vai querer ficar de fora!