Ainda a braços com os enormes desafios causados pela pandemia, a indústria automóvel enfrenta agora um novo obstáculo. A falta de semicondutores está a impactar a produção automóvel em todo o mundo, colocando em causa a recuperação do sector. Ironicamente, trata-se de pequenas peças, insignificantes em tamanho, mas que, sem darmos por isso, são centrais na nossa vida e essenciais para o funcionamento de um automóvel moderno.

A luta que se verifica no terreno para atender os pedidos dos consumidores é, em si, intrinsecamente uma boa notícia. Após a súbita travagem a fundo durante os primeiros dias de confinamento, contrariando algumas previsões, a procura deu sinais de vida ainda durante o último trimestre de 2020. No entanto, neste contexto, o esforço pela recuperação das vendas perdidas no último ano leva os fabricantes a efetuar atualmente uma tremenda ginástica.

Algumas das abordagens relatadas passam por parar temporariamente a produção ed alguns modelos e versões, priorizando os que geram maior rentabilidade, ou até construir automóveis incompletos, para colocar em parque, à espera de poder incorporar mais tarde os componentes em falta.

A pandemia tem trazido enormes constrangimentos às cadeias de abastecimento mundiais, afetando a necessária fluidez dos mais diversos tipos de matérias-primas, impactando a capacidade produtiva de várias indústrias e a automóvel não é exceção. O mundo está à beira da quarta revolução industrial. Conceitos como a Internet das Coisas (IoT – Internet of Things) e tecnologias como a Inteligência Artificial e o 5G vão fazendo o seu caminho a passo acelerado, pelo que a escassez de semidondutores tem particular relevo e causa grande sobressalto.

Porque faltam chips?

Várias razões têm sido apontadas. A incapacidade de os fabricantes de semicondutores darem resposta pronta a uma flutuação da procura de tamanha amplitude é uma delas (um desafio clássico de logística). Recorde-se que a rutura na procura de automóveis e o encerramento de fábricas levou a uma corrida ao cancelamento de encomendas de peças, nomeadamente chips. E agora, os tempos de produção de chips não conseguem acompanhar a rápida retoma, uma situação que se revela incompatível com o modelo de produção just in time ampamente adotado pela indústria automóvel.

Outros dizem que os fabricantes de semicondutores estão a dar prioridade a outras indústrias, nomeadamente fabricantes de smartphones, consolas de jogos e outros equipamentos eletrónicos mais lucrativo, o que parece ser naturalmente plausível, uma vez que estes tiveram uma procura acrescida durante os vários períodos de confinamento.

Outros ainda, apontam para a deslocalização das fábricas de semicondutores para a Ásia, concentração da produção em poucos players como a TSMC de Taiwan, ou até acidentes e condições climatéricas adversas que afetaram, um pouco por todo o mundo, grandes centros de produção.

Mas a não ser que o leitor trabalhe numa fábrica de automóveis e esteja diretamente envolvido no desatar deste complexo nó e a ter de lidar com o que podemos chamar uma tempestade perfeita (pandemia global, disrupção da cadeia de abastecimento e tensões geopolíticas), saber qual é exatamente a causa não será muito relevante. Até porque, provavelmente, a resposta contém genericamente um pouco de cada uma e o desfecho neste momento parece incerto. Durará esta situação mais um mês ou mais um ano? Contudo, para todos os outros, é um excelente pretexto para refletir sobre as mais profundas implicações do sucedido e colocar em perspetiva o que pode vir a seguir.

O automóvel como peça de um novo ecossistema de mobilidade

A indústria automóvel, um dos marcos da segunda revolução industrial, é centenária e em larga medida epicentro de grandes inovações, quer sejam no âmbito da teoria da gestão (produção em série, Kaizen, etc.), como na mecânica e termodinâmica.

Com o tempo, as partes mecânicas que constituem um automóvel têm vindo a acompanhar tangencialmente a terceira revolução industrial. Os motores de combustão interna, transmissões, travões, etc., começaram a ser controlados por uma infinidade de sensores e atuadores, geridos por centenas de pequenos chips. Não será, assim, surpresa o que está a suceder, uma vez que hoje em dia aspetos como o ambiente, segurança e conforto estão em larga medida dependentes destes componentes eletrónicos.

À medida que a indústria automóvel prossegue o caminho da eletrificação e persegue a visão de veículos partilhados e autónomos, aproxima-se a passos largos de participar ativamente na quarta revolução industrial.

A complexidade insustentável gerada pelas centenas de chips, apenas inteligentes o suficiente para desempenhar a sua função, sem grande capacidade de comunicação entre eles, começa a dar lugar à incorporação de ainda mais tecnologia, onde a adoção de um computador central (um grande cérebro) permite colocar todos os componentes do automóvel a falar entre si e, mais importante que tudo, a comunicar bidirecionalmente com o mundo à sua volta.

Neste âmbito, a Tesla foi mais uma vez uma das pioneiras nesta matéria, substituindo muitos desses chips por poucos e mais poderosos computadores, permitindo atualizações remotas como nos telemóveis e a ativação a pedido de determinadas funcionalidades (mais autonomia, condução autónoma, etc.).

Como o académico japonês, Fumio Kodama, referiu recentemente, “o automóvel, originalmente inventado como um meio de transporte isolado vai renascer como um elemento de um sistema de transporte inteligente”.

Ou seja, como mais uma peça no futuro ecossistema da Internet-das-Coisas, pilar da quarta revolução industrial.

Esta é a mudança de paradigma que vivemos. A indústria automóvel passa a estar mais dependente do software do que do motor de combustão interna e partes mecânicas clássicas e será o software o principal gerador de valor no portefólio de desenvolvimento de produto dos fabricantes. Veja-se a preponderância que a eletrónica já representa num atual veículo elétrico.

Em suma, o automóvel está a transformar-se num aparelho eletrónico e os fabricantes de automóveis em empresas de alta tecnologia. A atual crise no fornecimento de semicondutores apenas sublinha as dores e desafios da transformação em curso; no entanto não coloca em causa o que parece ser um processo de mudança irreversível. Jim Adler, diretor-geral da Toyota AI Ventures, diz com graça o que penso ser uma boa síntese: “o mundo está a ser comido pelo software. Os automóveis são os próximos na ementa”.