A indústria automóvel está a viver a maior transformação dos seus 138 anos de história. Não se trata apenas de eletrificação, mas de um realinhamento profundo. O automóvel do futuro será definido pelo software e nem todos os fabricantes estão preparados para isso.
Karl Benz jamais poderia imaginar que, mais de um século depois de ter patenteado o primeiro automóvel, o maior desafio da indústria que fundou seria ensinar engenheiros alemães a programar. No entanto, é precisamente isso que está a acontecer nos bastidores da Mercedes-Benz, da Toyota, da Volkswagen e de praticamente todos os fabricantes tradicionais. Uma corrida urgente para deixarem de ser especialistas em mecânica e se tornarem empresas de tecnologia.
A transformação começou de forma discreta. Enquanto o debate público se centrava em saber se os carros elétricos seriam, ou não, o futuro, algo mais profundo estava a acontecer. Os automóveis começaram a encher-se de código. Uma média de 200 milhões de linhas, para sermos exatos, diz a Valeo. Trinta e três vezes mais do que um Boeing 787. Subitamente, o carro tornou-se num computador sobre rodas.
O novo consumidor e o software como vantagem competitiva
“Mais de 50% dos compradores afirmam que só consideram adquirir um automóvel se este tiver integração automática com o smartphone”, revela um estudo recente da McKinsey. Para uma geração habituada a atualizações constantes nos telemóveis, a ideia de comprar um carro que permanece igual durante uma década soa, hoje, a anacronismo.
A Tesla percebeu isso primeiro. Em 2022, uma falha de software nos vidros elétricos de mais de um milhão de veículos foi corrigida com uma simples atualização remota. Sem oficinas, sem marcações, sem logística.
A diferença tornou-se clara. Enquanto a Tesla envia atualizações que melhoram aceleração e autonomia, muitos fabricantes tradicionais ainda lutam com sistemas de infotainment instáveis.
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O fardo tecnológico da herança
A complexidade dos veículos atuais é imensa. Um automóvel moderno pode ter mais de 150 unidades de controlo eletrónico (ECU). Uma para o motor, outra para os travões, outra para os airbags, e assim sucessivamente. Cada uma com o seu próprio software e protocolo de comunicação.
“É como tentar dirigir uma orquestra cujos músicos seguem partituras diferentes”, diz-se nos bastidores. Qualquer alteração implica ensaios demorados para garantir que tudo continua a funcionar.
Esta fragmentação é fruto de décadas de evolução incremental. Sempre que se adicionava uma funcionalidade, introduzia-se mais um módulo. O resultado é uma manta de retalhos tecnológica que torna a inovação lenta e dispendiosa.
A indústria está agora a migrar para arquiteturas zonais, onde controladores gerem zonas do veículo e comunicam com computadores centrais. A McKinsey estima que 35% dos automóveis produzidos até 2035 seguirão este modelo, que permite atualizações por via aérea de forma segura e eficiente. Mas, para quem tem milhões de carros com arquiteturas antigas, a transição é como reconfigurar um avião… em pleno voo.
Os nativos digitais
Enquanto os fabricantes históricos lutam com o seu passado, novos protagonistas avançam sem amarras. Tesla, BYD, NIO, Xiaomi e Lucid nasceram todas na era digital e projetaram os seus veículos como plataformas conectadas desde o primeiro dia.
A Tesla optou desde início por uma arquitetura centralizada e envia regularmente funcionalidades novas para carros já vendidos. A BYD desenvolveu o seu próprio sistema operativo (DiLink) e a NIO construiu uma comunidade digital em torno dos seus veículos. A Xiaomi integrou o carro no seu ecossistema HyperOS, comum a smartphones, wearables e dispositivos IoT.
Estas empresas operam com ciclos de inovação de meses. Lançam versões beta, recolhem feedback e atualizam rapidamente. Para a cultura corporativa tradicional, habituada a ciclos de produto de anos, esta agilidade é quase desconcertante.
O despertar dos gigantes
Perante uma ameaça existencial, os fabricantes tradicionais começaram finalmente a reagir. Exemplos disso são o Grupo Volkswagen, que criou a CARIAD, a Mercedes-Benz, que se aliou à NVIDIA e a Stellantis e a BMW, que estabeleceram parcerias com a Qualcomm.
Estas iniciativas mostram uma realidade incómoda. As competências digitais internas ainda estão em construção. Atrair programadores altamente especializados continua a ser um desafio, especialmente quando concorrem com gigantes como Apple, Google ou Tesla.
Alguns fabricantes optam por criar startups internas com equipas ágeis, enquanto outros se instalam em centros tecnológicos. Já há vários anos, a Mercedes-Benz e a BMW abriram escritórios em Silicon Valley numa tentativa de atrair talento e assimilar uma mentalidade mais digital.
Um modelo económico em transição
Empresas como a Tesla concentram todos os seus recursos em veículos elétricos e software. Já os fabricantes tradicionais vivem um dilema: continuam a investir em motores de combustão (ainda rentáveis), enquanto financiam a transição para o digital e elétrico (ainda deficitária).
Este malabarismo pressiona as margens. E o mercado não perdoa hesitações. O valor bolsista da Tesla chegou a ultrapassar a soma da Toyota, Volkswagen e GM, apesar de vender menos carros. Os investidores estão a apostar em empresas tecnológicas, não apenas em construtores de automóveis.
O software como núcleo de valor
Historicamente, o prestígio de um automóvel media-se pela potência, engenharia e materiais. Hoje, a balança começa a inclinar-se para o lado do software.
Um estudo da Deloitte afirma: “O futuro dos veículos será definido pelo software”. O mercado global desta área poderá atingir 460 mil milhões de dólares até 2030, projeta a McKinsey.
Para muitas marcas, isto implica reinventar o modelo de negócio. Além da venda inicial, há espaço para receitas contínuas via subscrições, funcionalidades on-demand e até monetização de dados, esperemos que, com consentimento do utilizador. As empresas tecnológicas já operam neste paradigma. Os fabricantes tradicionais terão de aprender rapidamente.
É revelador que o novo CLA elétrico, recentemente apresentado, seja apontado como o primeiro Mercedes-Benz verdadeiramente definido por software. O modelo estreia o sistema operativo MB.OS, desenvolvido internamente pela marca.
Mas este é apenas um exemplo. Cada fabricante tenta provar que é capaz de se reinventar. O êxito ou o fracasso dessas tentativas ditará quem sobreviverá à próxima década.
Uma corrida contra o tempo
A janela de oportunidade está a fechar-se. Marcas chinesas como a BYD já dominam o segmento elétrico no seu mercado. A Europa e os EUA vão ser os próximos campos de batalha.
Os fabricantes tradicionais mantêm vantagens como a capacidade industrial, marcas consolidadas e um vasto know-how mecânico. Mas terão de lhes somar competências digitais. E isso exige mais do que contratar programadores. É preciso adotar uma cultura de experimentação, aceitar que o software falha e adaptar-se a um mundo em constante atualização.
Entre a inovação e a extinção
A indústria automóvel vive o seu momento iPhone. Tal como a Apple redefiniu o telemóvel, a Tesla e os novos construtores estão a redefinir o automóvel. A grande questão é: quantos casos “Nokia” haverá nesta história?
Os próximos anos serão decisivos. Veículos inteligentes e atualizáveis prometem ser mais seguros, mais personalizados e mais sustentáveis. Para os consumidores, esta transformação poderá oferecer o melhor dos dois mundos, unindo a confiança de uma marca histórica à inteligência de um dispositivo conectado.
Para a indústria, é uma questão de sobrevivência. Quem conseguir fundir a arte da engenharia com a ciência do software herdará o futuro da mobilidade. Os restantes arriscam-se a tornar-se notas de rodapé na história da maior transformação que o sector automóvel alguma vez viveu.