Em 2021, as luzes apagaram-se numa linha de montagem por falta de um minúsculo componente eletrónico. Uma peça que valia cêntimos acabou por travar milhões. Carros inacabados acumulavam-se nos parques, equipas ficavam paradas, concessionários esgotavam o stock. A cena repetiu-se um pouco por todo o mundo e expôs a fragilidade de uma cadeia de fornecimento hiperligada. Só nesse ano, estima-se que a indústria automóvel tenha deixado de produzir cerca de 7,7 milhões de veículos devido à escassez de semicondutores, segundo dados da consultora AlixPartners. Durante décadas, estes fornecedores operaram longe dos olhos do público. Mas a pandemia, a crise dos chips e a guerra na Ucrânia trouxeram-nos para o centro das atenções. Afinal, quem são estes atores capazes de travar gigantes globais com a simples ausência de uma peça?
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A orquestra por trás das marcas
Por trás de cada logótipo exposto no stand existe uma autêntica orquestra de empresas. São elas que produzem as dezenas de milhares de peças que compõem um automóvel comum, dos parafusos e sensores aos bancos completos e sistemas de travagem. Em Portugal, nomes como a Simoldes (plásticos técnicos), a Amorim Cork Composites (materiais leves e isolantes) ou a Caetano Coatings (tratamento de superfície e pintura) ajudam a dar forma a essa orquestra.
No jargão do sector, fala-se em “tiers” para descrever o grau de proximidade de cada fornecedor à marca final. Os Tier 1 fornecem sistemas completos, prontos a montar, como um painel de instrumentos ou um sistema de travagem. Os Tier 2 abastecem-nos com subconjuntos e componentes específicos. Já os Tier 3 fornecem matérias-primas e materiais base. Trata-se de uma pirâmide funcional, embora não rígida, já que a mesma empresa pode ser Tier 1 num projeto e Tier 2 noutro. Aliás, esta estrutura ajuda a explicar por que razão a especialização se tornou regra no sector.
Também o papel destes atores evoluiu de forma significativa. De meros executantes de desenhos sob especificações ditadas pelos construtores, tornaram-se parceiros estratégicos, envolvidos desde a fase de conceção. Vê-se isso na co-criação de ópticas LED inteligentes, como no caso da Valeo e da Hella, ou no desenvolvimento de baterias sob medida para veículos elétricos por empresas como a CATL, a LG Energy Solution ou a Panasonic.
Esta cultura tem raízes no Japão, com a Toyota e o conceito de keiretsu, um modelo baseado em redes de fornecedores de longo prazo, onde a confiança gerava qualidade e inovação. Hoje, o equilíbrio de poder está mais nivelado. Existem fornecedores tão avançados que são eles a ditar tendências, desde os sistemas de assistência à condução até às transmissões. Muitas das inovações que o condutor valoriza nascem em empresas cujo nome raramente chega ao emblema do capô.
A tempestade perfeita: 2020-2022
A pandemia foi o primeiro grande abalo. Fábricas encerradas, navios retidos, a procura a cair abruptamente e, pouco depois, a disparar de forma descontrolada. O modelo just-in-time (o sistema de produção e entrega “mesmo a tempo”, que durante décadas permitiu reduzir stocks) perdeu o compasso. Quando as linhas de montagem voltaram a operar, faltavam peças essenciais em praticamente toda a parte.
Dossier: A tempestade perfeita para a indústria automóvel (I)
Seguiu-se a escassez de semicondutores, que se revelou o verdadeiro calcanhar de Aquiles da indústria moderna. Um automóvel atual depende de centenas de chips, mas a produção está fortemente concentrada na Ásia. Com a eletrónica de consumo a absorver grande parte da capacidade produtiva, e a oferecer margens mais elevadas, o sector automóvel foi relegado para segundo plano. Só em 2021, as perdas terão atingido cerca de 210 mil milhões de dólares, segundo estimativas da consultora AlixPartners.
A guerra na Ucrânia, em 2022, agravou ainda mais o cenário. As cablagens produzidas no país deixaram de chegar a várias fábricas alemãs, interrompendo, por exemplo, linhas da BMW e da Volkswagen. A escassez de gás néon afetou também a produção de chips, enquanto as sanções impostas à Rússia dificultaram o acesso a matérias-primas como o alumínio e o níquel.
De repente, expressões como “risco-país” e “resiliência da cadeia” deixaram de figurar em notas de rodapé para passar a ocupar lugar central nas agendas dos conselhos de administração.
As respostas da Indústria
Estas fragilidades vieram redefinir por completo as prioridades. A cadeia de fornecimento deixou de ser encarada apenas como um centro de custos para passar a ser vista como um risco estratégico e, quando bem gerida, uma fonte de vantagem competitiva.
As respostas não tardaram. Criaram-se stocks de segurança nos pontos mais sensíveis, diversificaram-se fornecedores, redesenharam-se produtos para permitir o uso de componentes mais padronizados e investiu-se fortemente na visibilidade integral de toda a cadeia. Surgiram também alianças improváveis. A Toyota e a Denso uniram-se para criar a MIRISE, dedicada ao desenvolvimento de semicondutores. A Stellantis associou-se à Foxconn para lançar a SiliconAuto, focada em chips para veículos elétricos. Já a Ford firmou um acordo direto com a GlobalFoundries para garantir fornecimento, rompendo com a distância tradicional face aos fabricantes de componentes críticos, cuja gestão era até então deixada aos Tier 1.
O novo mapa do valor
Digitalização e Automação
A transformação digital deixou de ser promessa para se tornar rotina nas fábricas. Sensores, Internet das Coisas e análise em tempo real permitem uma manutenção preditiva e um planeamento mais afinado entre fabricantes e fornecedores. A inteligência artificial antecipa falhas antes de ocorrerem. Plataformas como a Prewave funcionam como autênticos radares operacionais.
No chão de fábrica, robôs, veículos autónomos internos e sistemas de visão artificial ajudam a colmatar a escassez de mão de obra e a elevar os níveis de precisão.
A Revolução Eléctrica
A eletrificação está a reconfigurar por completo o mapa de valor da indústria. Com os veículos elétricos, desaparecem centenas de componentes associados ao motor de combustão e ganham protagonismo elementos como as baterias, os motores elétricos, a eletrónica de potência e as cablagens de alta voltagem. Os fornecedores especializados em tecnologias de combustão enfrentam uma queda acentuada, enquanto os focados na eletrificação registam crescimentos expressivos, por vezes superiores a 40% ao ano. As estratégias dividem-se entre a migração total para o novo paradigma e abordagens “duais”, que mantêm ambas as tecnologias durante o período de transição.
Software no Centro
O automóvel definido por software coloca o código no coração do valor. As funcionalidades passam a estar disponíveis através de atualizações remotas, serviços conectados e ciclos contínuos de melhoria. Esta nova realidade exige equipas capazes de conjugar hardware e cloud numa mesma linguagem. Daí alianças como Bosch e Microsoft, ou o ecossistema criado entre a Volkswagen e a AWS.
Os Novos Desafios
A pressão por sustentabilidade intensifica-se sem tréguas. Os fabricantes exigem metas claras de descarbonização e práticas éticas em toda a cadeia de fornecimento. Isto traduz-se em aço “verde”, energia proveniente de fontes renováveis, rastreabilidade total de materiais como o cobalto e o lítio, e relatórios de sustentabilidade rigorosos.
Ao mesmo tempo, a geopolítica está a reescrever a geografia industrial. Tensões comerciais e conflitos armados estão a acelerar o regresso da produção para mais perto dos mercados finais. Os Estados Unidos apostam fortemente em incentivos à produção local, enquanto a Europa acelera a construção de fábricas de chips e baterias para reduzir dependências críticas da Ásia.
Olhar além do emblema
Em última análise, o que realmente conta é a fiabilidade do produto final. Mas essa fiabilidade constrói-se muito antes de o automóvel chegar ao stand, começando na qualidade dos fornecedores, na transparência da cadeia de abastecimento e na capacidade de resposta face a choques inesperados.
Olhar para além do emblema e perguntar “quem está por trás deste carro?” tornou-se parte fundamental da análise de risco. Os fornecedores, discretos, mas indispensáveis, ocupam hoje o centro da próxima revolução automóvel. A diferença entre um veículo imobilizado por falta de um chip e um serviço que nunca falha decide-se nos bastidores. E quem souber navegar esse território estará mais bem preparado para os próximos ciclos da indústria.


