Ainda antes da pandemia a Indústria Automóvel já enfrentava forças potencialmente disruptivas de monta. A pressão nas margens vinha a intensificar-se. Novos modelos de negócio desafiavam os incumbentes. E a incerteza económica provocada pelo Brexit e pela guerra económica entre os Estados Unidos e a China eram fatores desestabilizadores.

Na Europa, a consultora Deloitte estimava, num estudo sobre o futuro das vendas e pós-venda, uma quebra nas vendas e perda de receita de 2% até 2035, nos segmentos de negócio tradicionais. Quando a tudo isto juntávamos a evolução rápida e crescente da exigência dos consumidores, as novas tendências de mobilidade e a forte regulação, nomeadamente no que diz respeito ao cumprimento das metas ambientais, podíamos verdadeiramente compreender o espectro e dimensão dos enormes desafios (e oportunidades) que se lhe apresentavam.

Agora, os efeitos da COVID-19 podem bem ser um catalisador para a enorme mudança que já vinha a fazer sorrateiramente o seu caminho.

Se por um lado podemos observar uma travagem a fundo, embora circunstancial e passageira, em tudo o que diz respeito à mobilidade partilhada, por outro, todos os aspetos relacionados com a digitalização do processo de compra serão agora objeto de uma atenção redobrada e aceleração  por parte de fabricantes, concessionários e fornecedores de tecnologia.

A alteração dos padrões de compra dos consumidores, a exigência em recentrar o foco no cliente em detrimento do foco no produto são inegavelmente problemáticas e já há muito tinham sido diagnosticadas e amplamente discutidas, mas, na verdade, nunca seriamente endereçadas pela indústria, apesar das variadas aproximações e tentativas.

Este ponto desempenha agora um papel central, depois do choque provocado pelo Coronavírus, o qual deixou as redes de distribuição de joelhos, com as portas fechadas e muitíssimo limitadas na sua capacidade de contacto com os consumidores, enquanto a humanidade fazia uma transição em massa sem precedentes para o digital.

https://fleetmagazine.pt/2019/12/27/opiniao-transformacao-digital-na-industria-automovel/

O exemplo dos EUA

Há alguns anos, a Tesla abriu a caixa de pandora: a venda direta. Sem uma rede de concessionários, números crescentes de vendas e uma legião de fãs, vem ilustrar que um processo de retalho eminentemente digital é perfeitamente exequível e até financeiramente benéfico quando comparamos com os custos associados ao atual modelo físico. Poder-se-á ainda acrescentar que o mercado de usados tem sido aquele que mais tem inovado nesta área. Veja-se o exemplo da americana Carvana, que oferece a possibilidade de comprar um automóvel usado através de uma app e uma miríade de serviços digitais associados, incluindo financiamento, colocação da retoma e entrega em casa. O ano passado era número 8 da lista Top 100 da Automotive News (com mais de 94 mil usados vendidos em 2018) e na mais recente já era número 4 (com mais de 175 mil em 2019).

A questão que se coloca é como estes exemplos podem lançar pistas sobre o futuro da digitalização do processo de compra. Sabendo, claro está, que mais do que uma questão acima de tudo tecnológica, o que se trata nestes casos é da criação de um processo de compra completamente novo, construído de raiz e que, muito provavelmente, uma das razões do seu atual sucesso é não estar ancorado em nenhum legado. Devemos também admitir que não existirá certamente um arquétipo único de cliente e um único caminho para lhe entregar uma grande experiência de compra. A jornada totalmente online não será mais do que um dos caminhos possíveis disponíveis.

Mas ainda que possamos dizer que apenas uma pequena parte (hoje) pode preferir este modelo, eu ousaria dizer que deverá conter aproximadamente o mesmo número de consumidores que prefere que tudo se desenrole no ambiente físico. E o que temos no meio? Uma quantidade avassaladora de múltiplos caminhos imprevisíveis que o comprador poderá desejar percorrer e inúmeras formas de os servir.

No digital, os dados ajudam à personalização do negócio

Os compradores de automóveis do futuro estarão online, offline e multicanal. O seu conhecido desconforto com o atual processo de compra dá sinais crescentes de que cada um deles ambiciona definir a sua própria jornada e não seguir as que até agora (poucas) lhe têm sido impostas. Se por um lado, esta multiplicidade de possíveis caminhos e pontos de contacto online/offline levanta uma complexidade tremenda, tanto mais que exige obrigatória integração com entidades externas (financeiras e não só), por outro, a geração por essa via de uma quantidade incalculável e preciosa de dados permite conduzir a todo um outro nível acrescido de personalização e de relação com marcas e retalhistas.

Brevemente vamos assistir a uma verdadeira revolução na transformação digital do processo de compra automóvel. Uma melhoria significativa da experiência do cliente e a construção de processos mais resilientes a choques. E não pode ser de outra maneira, sob pena de mais uma vez podermos ver as Amazons, Ubers e Airbnbs da vida virem a ocupar esse vazio.