Adolfo Mesquita Nunes (AMN), Débora Melo Fernandes (DMF) e João da Cunha Empis (JCE), advogados da equipa de assessoria jurídica da Gama Glória, são os autores do “Regime Jurídico da Mobilidade Elétrica”, um trabalho relevante para todos os intervenientes que desenvolvem a sua atividade no âmbito da Mobilidade Elétrica.
Por força da sua especificidade, os veículos eletrificados e as exigências das quais depende o seu bom uso tornam indispensável uma moldura jurídica que, além da componente fiscal, exigiu a definição de instrumentos regulatórios que garantem o enquadramento e os parâmetros do exercício da atividade dos fornecedores de energia e dos operadores de postos de carregamento.
Sem se debruçar sobre a componente associada aos incentivos e benefícios fiscais dirigidos a entidades singulares ou coletivas que adquiram ou façam uso de um automóvel elétrico ou plug-in, o “Regime Jurídico da Mobilidade Elétrica” acompanha e analisa todo o processo legislativo nacional que, em alguns aspetos, se antecipou a diretivas e regulamentos posteriormente produzidos pela União Europeia.
A FLEET MAGAZINE reuniu com os autores desta obra editada pela Almedina, para uma conversa que abordou o contexto atual da Mobilidade Elétrica em Portugal, a utilidade e vantagens da legislação produzida pelas autoridades nacionais neste contexto, os direitos dos utilizadores de veículos elétricos, assim como a necessidade de uma evolução fiscal, no âmbito da mobilidade, que não envolva a simples posse e/ou usufruto de um veículo próprio.
Para os interessados em aprofundar conhecimento e formação nesta matéria, ficámos também a saber que o segundo curso sobre o Regime Jurídico da Mobilidade Elétrica, realizado pela NOVA School of Law, arranca já no início do próximo ano.
Sendo a Mobilidade Elétrica uma realidade totalmente nova no panorama geral da Mobilidade (e em constante evolução), como avaliam o trabalho da legislação portuguesa nesta matéria?
DMF: Portugal começou bem e antes de boa parte dos países europeus ao aprovar, logo em 2010, um enquadramento legislativo inovador e centrado no utilizador. Ainda que com insuficiências, a verdade é que esse enquadramento permitiu o desenvolvimento da rede de carregamento, a expansão da mobilidade elétrica e o surgimento de um mercado concorrencial nas várias atividades do sector.
AMN: No entanto, a última revisão relevante desse regime data de 2014, ou seja, tem oito anos. Ora, o panorama hoje é muito distinto, quer do ponto de vista dos utilizadores e dos seus hábitos, quer do ponto de vista da maturidade dos modelos de negócio, quer ainda do ponto de vista da inovação e disrupção num sector tão dinâmico.
Como é evidente, o regime jurídico da mobilidade elétrica começa a acusar alguma desadequação. Todos os que trabalham com este regime, e nós fazemo-lo de forma diária enquanto advogados, conseguem encontrar aspetos que precisam de ser melhorados para refletir as transformações que estão em curso.
O regime português não só está em linha com as diretrizes da UE, como, aliás, as antecipou em larga medida
É possível estabelecer algum grau de avaliação entre o enquadramento jurídico nacional e o de outros países europeus? Nomeadamente no que se refere à interpretação feita por cada estado de diretrizes da UE e a sua transposição para a legislação de cada país?
JCE: O regime português não só está em linha com as diretrizes da UE, como, aliás, as antecipou em larga medida.
Muito do que a revisão das Diretivas europeias vem trazer, já está regulamentado em Portugal. Designadamente no que diz respeito ao acesso universal à rede através de uma plataforma única de e-roaming e à densificação do conceito de posto de acesso público.
DMF: Aliás, todos os dias nos chegam perguntas sobre a interpretação a dar ao conceito de posto de acesso público.
Dessa análise resulta alguma conclusão imediata da vantagem ou desvantagem do regime jurídico nacional?
DMF: Não há dúvida de que o acesso universal à rede que é imposto e protegido pela nossa legislação constitui uma enorme vantagem.
Em Portugal, um utilizador tem acesso a todos os postos de acesso público, independentemente do comercializador ou comercializadores que tiver escolhido. O mesmo não se passa noutros países, em que um utilizador carece de ter vários cartões de carregamento (um para cada rede) ou aplicações privadas de e-roaming que assegurem os acessos às redes dos vários operadores.
AMN: Por isso, um dos grandes desafios do legislador será preservar essa enorme vantagem, conciliando-a com o desejável surgimento de novos modelos de negócio e tornando-a, além disso, economicamente mais apetecível para os utilizadores.
A Reforma da Fiscalidade Verde representa o ponto de partida da Mobilidade Elétrica em Portugal?
AMN: Tão ou mais importante do que a fiscalidade e a regulação é a confiança dos utilizadores em que poderão circular e carregar os seus veículos sempre que necessitarem.
Não se trata de desvalorizar o papel da fiscalidade, que o teve e tem. Mas é essencial deixar claro que os utilizadores precisam, por um lado, de uma rede capilar de pontos de carregamento (o que abre um conjunto de questões do ponto de planeamento urbanístico e de imobiliário) e, por outro, de veículos com autonomia cada vez maior (o que implica um esforço significativo por parte dos fabricantes).
Por isso, o ponto de partida não esteve apenas ligado à fiscalidade, mas também ao desenvolvimento da rede de pontos de carregamento, à universalidade de acesso e à inovação dos fabricantes.
De facto, o aumento da adesão por parte de clientes particulares à Mobilidade Elétrica ganhou mais energia após a abertura aos privados do mercado de carregamento dos veículos elétricos. A legislação prevê deveres e fiscalização para os operadores destes postos. Da vossa perceção enquanto juristas, sentem que os direitos dos utilizadores encontram-se devidamente acautelados?
DMF: Do ponto de vista jurídico, claro que sim. A nossa legislação é centrada no utilizador.
No entanto, do ponto de vista prático, há um conjunto de ferramentas em desenvolvimento que melhorarão bastante a experiência do utilizador, quer do ponto da vista da informação relativa a preços e pagamentos, quer do ponto de vista da previsibilidade e planeamento das suas viagens e carregamentos.
E a regulamentação atual também é clara e a necessária para permitir a defesa dos direitos de um utilizador de um veículo elétrico que pretenda instalar um posto de caregamento em local apropriado (garagem, por exemplo) num edifício habitacional partilhado por vários condóminos?
JCE: Apesar de se reconhecer a qualquer condómino o direito de instalar um carregador na garagem comum, a verdade é que muitos utilizadores reportam problemas e dúvidas sobre de que forma esse direito pode ser concretizado.
Isto é sinal de que a legislação pode ainda ser melhorada nesse aspeto. Aliás, chegou a haver uma portaria, de 2011, que regulamentava esta matéria, mas que, em 2016, foi revogada sem que tivesse sido substituída por outra que tratasse da mesma matéria. Há aqui uma lacuna que tem de ser suprida.
As políticas de mobilidade urbana, muito assentes na descarbonização, vão muito mais longe: dos transportes públicos à mobilidade suave, passando pela micromobilidade e a partilha de veículos
A Reforma da Fiscalidade Verde teve como principal razão a redução das emissões de CO2 dos transportes. Por isso a Mobilidade Elétrica é, em si, um conceito muito abrangente e que não envolve apenas os automóveis. Como é tratada a questão de outras formas de transporte ou até mesmo a partilha desses meios?
AMN: Deixando agora de lado os transportes aéreo, marítimo e rodoviário pesado, que têm também desafios muito fortes no âmbito da transição energética, e sobre os quais estamos igualmente a trabalhar e a refletir, estamos totalmente de acordo com essa ideia de que a mobilidade elétrica nas cidades não se circunscreve aos automóveis.
As políticas de mobilidade urbana, muito assentes na descarbonização, vão muito mais longe: dos transportes públicos à mobilidade suave, passando pela micro mobilidade e a partilha de veículos.
A política fiscal de transportes de pessoas e bens deve dar cada vez mais conta dessa lógica de integração ambiental – um caminho onde ainda há muito por percorrer.
Já decorreu um primeiro curso online sobre o Regime Jurídico da Mobilidade Elétrica realizado pela NOVA School of Law e sei que está prestes a arrancar nova formação. Que tipo de audiência o curso pretende atingir, quando e onde vai decorrer e, de forma sintética, que temas vão ser tratados?
DMF: O curso decorrerá, no início de 2023, na NOVA School of Law, em modelo híbrido. Não se limita a juristas, já que está direcionado também para todo o ecossistema profissional à volta da mobilidade elétrica: decisores públicos, autarcas, gestores, engenheiros, comerciais, professores, investigadores e estudantes de cursos pós-graduados.
O curso focará o enquadramento jurídico nacional e europeu da mobilidade elétrica, as atividades da mobilidade elétrica e seu relacionamento, a repartição de competências entre as várias entidades com poderes na matéria, a vertente tarifária e fiscal, a composição da rede nacional de mobilidade elétrica, a distinção entre postos de acesso público e postos de acesso privativo, o licenciamento urbanístico, o domínio público e o carregamento residencial.